Estávamos em 1989, em pleno ano da primeira eleição para presidente da República. O clima nas universidades era efervescente, mas não era tudo isso que alguns contam, pelo que me lembre. Torcia-se mais para os candidatos do que para os clubes de futebol de então, que já estavam meio em baixa naquela época.
Naquele tempo, a esquerda já havia dado um jeito de "infiltrar" seus "alunos-militantes" no centro acadêmico na nossa faculdade de comunicação lá na Metodista de São Bernardo do Campo. Na minha turma de jornalismo, um quarto dos colegas eram militantes da esquerda de fato ou de coração (ou pelo menos tinha a impressão que eram); outro "quarto" eram de simpatizantes bem próximos, cultíssimos para os nossos parcos padrões de pós-adolescentes, eu diria, "peró, no mucho" ; o terceiro quarto - no qual eu me incluía - não era simpatizante, mas também não rejeitava as teorias marxistas e afins. O que eles queriam é que a situação do país melhorasse para a gente ter uma vida melhor (confesso que penso mais ou menos assim até hoje), já que a maioria destes vinha da classe "operária fabril-bancária-comercial"; o último quarto era do pessoal que não estava nem aí para política, estavam preocupados em viver a juventude - no que faziam muito bem, cá entre nós. Ainda sim, não dava para chamá-los de "alienados" porque eles, assim como o "quarto" anterior, estavam preocupados mesmo era com o futuro profissional, se a inflação galopante corroeria os seus míseros salários, se iriam ter grana para pagar a faculdade, se não ficariam muito tempo desempregados - caso fossem despedidos do "serviço"- se o "Curínthia" ou o "Parmera" iriam ganhar o "Paulistão" daquele ano, se o próximo disco do U2 seria tão bom quanto os álbuns anteriores, ou se surgiria uma banda de rock nacional totalmente "sui generis", se a crescente violência urbana atingiria o seu bairro, entre outras preocupações urgentes de então.
Virava e mexia, a metade progressista e de "esquerda" - tudo gente boa, gente bacana, estudiosa, baladeira até, embora levasse tudo muito a sério - viviam nos questionando sobre em quem a outra metade mais "conservadora" - porém mais alegre, mais desencanada, mais otimista, e mais gozadora - votaria para presidente. Como as opções do "lado de cá" eram muito maiores, a "metade de lá" se irritava frequentemente com as nossas respostas. Alguns mais ousados - ou até por gozação - declaravam seu voto a Paulo Maluf. Outros, para mostrar "erudição", elogiavam Ulisses Guimarães, mesmo não sabendo direito quem era o cara. Pobre do aluno que afirmou votar em Roberto Freire, aquele do PCB, o partidão. Esse foi defenestrado pelos nossos "amiguchos" socialistas (mas o Freire não era comunista e até simpático, diga-se de passagem? Vai entender esse povo...)
- Então, 'Companheiro', esse tal de Afif, do Partido Liberal, parece ser um bom nome, não é? - disse eu, ingenuamente.
- Tá maluco???? Justo você, Marcão, um legítimo representante da classe proletária, vai votar num representante da burguesia comercial paulista? - retrucou o interlocutor petista.
- Ah, coitado, só por que ele é presidente da Associação Comercial de São Paulo? Comerciante também é gente, tadinho... - interveio Machado, já em tom de ironia.
- Vocês tem que votar no Lula, que é aqui da região do ABC, é gente nossa... - esbravejou o "esquerdante".
- E daí? - indaguei - Tenho de votar nele por que ele mora aqui em São Bernardo? Pelo menos se morasse em Diadema... poderia até pensar no seu caso - complementei já "tirando uma com a cara" do recalcitrante.
- Assim não é possível!!! Vocês são uns alienados. Levam o debate político para 'bases pessoais' (até hoje não entendi o que ele quis dizer com essa "gíria de comunista", hehehe)! Por isso o país está na porcaria em que se encontra - treplicou o nosso amigo, já em um tom de voz um pouco mais "alto".
- Calma, 'Companheiro' !- interferiu Machado novamente, em um tom de conciliação - "Você tem razão. Precisamos votar em alguém da esquerda, já que somos proletários do ABC, comerciários, etc...
- Tem razão, Machado - concordei já entendendo a "má intenção" do que ele diria a seguir.
- Por isso não vamos votar mais no Afif, disse o meu colega de "estripulias".
- Até que enfim vocês entenderam! - disse nosso interlocutor, mais calmo.
- 'Companheiro', nós votaremos no grande senador Mário Covas, desse partido novo social democrata, o PSDB, o 'partido da arara' - complementou às gargalhadas.
- Tá errado, meu amigo, que Mário Covas, do 'partido das araras', o cacete!
- Desculpa o Machado, 'Companheiro', sempre confunde arara com tucano, não é Machado? - interferi, corrigindo-os cinicamente.
- Com vocês não dá para conversar. Não levam nada a sério - berrou o nosso amigo "Companheiro", já batendo em retirada.
Nem ao menos quis ouvir a nossa proposta de "armistício" em que Machado propôs-lhe saborear mais algumas coxinhas (sem trocadilhos, caro leitor, por favor), que haviam acabado de aterrissar em nossa mesa, juntamente com um pedido de desculpas, alertando que nós estávamos brincando com ele. Só que a única coisa séria da história toda é que votaríamos no velho senador tucano.
Ele ficou mais de um mês sem conversar conosco e a turma dele nos evitava também. Eu, o Machado e a nossa galera éramos tão aéreos e até ingênuos com as coisas, que demoramos a notar o "boicote". Depois ele foi se chegando, se aproximando, perguntando coisas sobre futebol com o Machado e sobre rádio comigo. Levamos um papo finalmente civilizado a sério sobre política. Nós ouvimos as razões dele e ele (finalmente) dispôs a ouvir os nossos argumentos.
No fim daquele semestre, ele até acabou fazendo um trabalho sobre alguma matéria de humanas com a nossa turma. Achei que iria dar merda porque até no nosso grupo de "conservadores" (segundo os "progressistas") haviam duas socialistas ultrarradicais. E o pau sempre quebrava porque, além de mim, do Machado e mais outros três amigos amantes do "capitalismo", da "livre iniciativa" e do "empreendedorismo", nosso grupo contava com um arquiteto mineiro, um professor de alemão (vizinho do Lula por sinal) e um seguidor de Nietzche muito gente boa, que não eram muitos adeptos das teorias do seu Karl Marx e as contestavam com mais propriedade do que nós, pobres mortais do bando.
Em um desses costumeiros "arranca-rabos" dentro da nossa turma, quem acabou comandando a "turma do deixa disso" foi justamente nosso "companheiro" colega convidado, que botou panos quentes e acalmou os ânimos pregando a paz mundial no grupo. E não brigamos mais (até ele sair).
Por fim, a maioria de nós acabou votando no Lula mesmo, só que no segundo turno porque ninguém queria uma fraude chamada Fernando Collor, não é mesmo?
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