segunda-feira, 1 de dezembro de 2003

E o Juca Kfouri tem razão?

Na edição desta semana, a revista Veja publica uma nota na seção Radar dando conta que o radialista Milton Neves será o novo “garoto propaganda” da Cervejaria Brahma. São 2,5 milhões de luvas mais 300 mil reais mensais, segundo a revista. Nos últimos 4 anos, Milton Neves foi o principal divulgador da Schincariol na mídia eletrônica.

Até aí, nada de mais, não fosse ele um radialista, um comunicador social. Quem trabalha nessa área sabe que o seu principal patrimônio é a credibilidade. Um profissional de comunicação sabe que tudo o que ele diz e escreve – notícias e opiniões - é levado a sério pelo leitorado ou pela audiência. O leitor, telespectador e ouvinte parte do princípio de que o comunicador está sendo sincero, que age de acordo com suas convicções, dentro de uma certa ética que determina que ele jamais engane quem o ouve ou o lê.

Casos como os de Milton Neves não são poucos e são mais complicados. Embora não tenha necessariamente enganado seus telespectadores e ouvintes, uma vez que sempre afirmou que fazia comerciais dando seu testemunho e que acha legítimo esta prática, o apresentador e seus anunciantes têm duas a resolver:

1 – Como é que ele, que sempre exaltou as qualidades dos produtos Schincariol e demonstrava até ter uma certa “intimidade” com os proprietários e diretores da empresa, vai convencer a sua audiência que agora ele aprecia a cerveja da concorrência?

2 – Como ficam aqueles que começaram a consumir os produtos da Schin graças ao insistentes testemunhos comerciais do apresentador? Vão mudar para a Brahma também? Vaõ se sentir “enganados” porque aquele formador de opinião que “penhorou” sua credibilidade para determinada marca agora não poderá mais descrever suas qualidades porque faz comercial justamente para o maior concorrente.

Juca Kfouri, da Rádio CBN, há muito tempo questiona este problema do comunicador participar de peças publicitárias veiculadas na rádio em que trabalha, quer seja simplesmente falando o nome do anunciante que patrocina o seu quadro, quer seja fazendo comerciais dando seu “testemunho”, quer seja “entrevistando” representantes dos anunciantes como se fosse um trabalho jornalístico. Juca sempre alertou para o fato de, existir uma tênue linha que separa a credibilidade do comunicador da do patrocinador. O próprio Milton Neves fora “vítima” de uma armadilha dessas que este tipo de merchandising acaba armando: uma empresa de seguros de saúde, que o radialista anunciava efusivamente por meio de testemunhais, acabou falindo de uma hora para outra, deixando centenas de clientes – ouvintes do radialista incluso – a ver navios.

A coisa é tão séria que algumas grandes emissoras de rádio das grandes capitais coibem – sem muito alarde – este tipo de propaganda ou expediente de divulgação comercial. No Sistema Globo de Rádio, por exemplo, nenhum locutor ou repórter do departamento esportivo menciona algum produto ou serviço de algum anunciante das jornadas esportivas ou de programas afins. Esta função fica a cargo somente dos locutores comerciais. Na CBN a regra vale para todos os jornalistas. Fora da programação esportiva da Globo, o recurso do merchandising é pouco usado, em comparação às concorrentes diretas como a Rádio Capital (SP) e Rádio Tupi (RJ).

Já na Globo FM do Rio, uma emissora musical que também pertence ao Sistema Globo de Rádio, é comum a emissora inserir comerciais no formato de “flashes ao vivo do local”, imitando entradas ao vivo de repórteres do departamento de jornalismo. A exemplo da Rádio Eldorado/Estadão AM de São Paulo, esses “informerciais” vão ao ar sempre no fim de semana, são conduzidos por algum locutor contratado do anunciante e quase sempre mostram ofertas de veículos de concessionárias abertas naqueles dias.

Mas se, este tipos de práticas de anúncio é evitado por boa parte das grandes emissoras do eixo Rio-São Paulo, ela ainda é usada largamente em dezenas e dezenas de emissoras de rádio de outras capitais e também fora dos grandes centros. Não é raro ouvir um repórter, apresentador, locutor ou jornalista – sobretudo da área esportiva – citar ou até mesmo ler testemunhais de seus patrocinadores. Na Rádio Anhanguera, afiliada da CBN em Goiânia, os locutores e apresentadores dos programas futebolísticos e jornadas esportivas citam ou anunciam quase que de minuto em minuto as quase duas dezenas de empresas que patrocinam a programação esportiva. Nos programas esportivos da Transamérica Pop FM de São Paulo o mesmo ocorre.

Há também casos em que o radialista ou jornalista, em especial o esportivo, tem de ir atrás do anunciante, sob pena de perder seu espaço na rádio para outro colega com mais “patrocinadores”. Nesse ponto, a linha tênue que separa a liberdade de expressão e autonomia comercial da auto censura e censura econômica fica mais tênue ainda.

É bom deixar claro que essas práticas citadas até aqui, embora lancem dúvidas sobre suas legitimidades, não são ilegais. Ninguém é idiota suficiente para negar que a propaganda é um dos sustentáculos importantes dos veículos de comunicação, ainda mais no rádio. É importante, sim, mas não é o principal. A veiculação de propaganda tem de ser bem definida, bem pensada, de modo a não ferir a ética de seus profissionais, nem causar danos morais ou ludibriar os ouvintes, leitores e espectadores. Os radialistas e ouvintes já deveriam ter colocado esse assunto em discussão.

Todavia, percebe-se que há uma certa má vontade em discutir este problema pois ele não é tão simples assim. De qualquer maneira, é necessário se estabelecer regras mais claras, cujo cumprimento possa ser fiscalizado pela própria audiência, não como consumidora, mas como cidadã. Do contrário, continuaremos a ouvir um rádio de qualidade sofrível em sua média produzido por profissionais mal pagos e desmoralizados dentro do mercado de trabalho.

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