sexta-feira, 5 de dezembro de 2003

Entrevista com o Júlio Medaglia

Júlio Medaglia : "O Rádio revelou a cultura popular brasileira com vigor e criatividade"

Mal tive tempo de dar bom dia e ligar o gravador. O entrevistado da vez me cumprimentou e desandou a falar:

_'O Rádio está sempre presente... o Rádio foi, no Brasil, um dos exemplos de cultura popular brasileira que deu certo.... o Rádio revelou a cultura popular brasileira com tanto vigor e com tanta criatividade quanto a música e o futebol. Só os últimos anos é que o veículo virou uma máquina de fazer dinheiro e vender disco, então, realmente, acabou o chamado 'rádio de brodcasting', que era o rádio de produção. As emissoras tinham, em outros tempos, orquestras sinfônicas, tinham casts enormes de atores, locutores com vozes específicas, cada um com um timbre, cada um pra um horário... e também tinham corpos de redatores, novelistas... fora os sonoplastas deslumbrantes, que usavam só música clássica, quer dizer... o Rádio foi uma coisa riquíssima, uma das coisas mais maravilhosas que a cultura popular criou.'.

Deu pra ter uma idéia do papo quem vem por aí, né ? Quem sucede o tranquilão Afonso Braga aqui no nobre espaço de entrevistas do Rádio Agência é o maestro bom de papo, música e briga, Júlio Medaglia.

Enquanto prepara uma nova orquestra fora se São Paulo e espera pela conclusão das obras num teatro para 700 lugares no último piso do Shopping Frei Caneca, onde deve assumir a direção artística, o regente recebeu o RA em sua confortável casa, no bairro do Morumbi.

Em quase 40 minutos de conversa, Medaglia conta como começou sua relação com o veículo, entrega como viu bem de perto o começo do jabá, relembra a experiência no comando da rádio Roquete Pinto e, claro, alfineta com sua batuta afiada. Na mira: TV Cultura e OSESP.

Coloque um Schoenberg pra tocar no fundo e boa leitura.


RA – Agora que já testamos o áudio (e que teste !), vamos lá... eu fiquei sabendo que você começou a ouvir rádio na carona da sua mãe, enquanto ela ouvia as novelas...

Medaglia – Minha mãe sempre foi costureira, a vida toda. Ela tinha uma tabuinha, assim mais ou menos (mostrando o tamanho), de 1,5 m por 0,5m, que ela deixava em cima do joelho e ali ela fazia as costuras, o dia inteiro. A imagem que eu tenho da minha mãe é ela sentada ali naquela cadeira, fazendo as costuras dela... e a máquina na frente, pra quando precisasse. Mas sempre, sempre, o rádio ligado, naquelas emissoras que faziam o broadcasting, que tinham novelas durante o dia, shows, espetáculos...

RA – Era a TV da época, né ?

Medaglia – Só que era muito mais criativa. O povo brasileiro conseguiu entender mais do que os europeus – quando nasceu o rádio – que o som tem uma capacidade de mexer com a imaginação das pessoas muito mais do que a imagem da televisão o faz. Trabalhando com a sonoridade da voz e da música, você constrói na cabeça das pessoas uma imagem que a própria pessoa inventa. Eles dão aqueles subsídios, eles inventam uma sonoplastia, um tipo de locução e redação que faz com que você seja induzido a provocar a imaginação. Então, o Rádio é muito mais. A TV te anestesia, vem tudo pronto. Por isso dizem que o Rádio é o veículo quente e, a TV, o veículo frio. À primeira vista, essa frase não faz sentido mas, quando você entende o que ela quer dizer com isso, você vê que tem toda a razão. No Brasil, diferente do que aconteceu na Europa, as pessoas foram logo brincando com o veículo. Quando surgiu o Rádio na Europa, a primeira coisa que eles fizeram foi buscar Bethoveen, os grandes músicos do passado, os grandes literatos, para radiofonizar toda a velha tradição cultural européia. E com isso, o rádio passou a ser um veículo de outros veículos: do concerto sinfônico, da literatura, do cabaré... o veículo de algumas culturas sofisticadas. Nos EUA isso também ocorreu mas, no Brasil, não, o pessoal foi brincar com o veículo. Uma desfaçatez absoluta, irresponsável, típica brasileira. Eles foram lá começar a inventar, fazer efeitinhos, brincadeiras, sonoplastias e, como isso, foi criada uma linguagem radiofônica muito agressiva. Desde que eu era criança eu ouvia essas coisas... a minha mãe ficava com aquele rádio ligado e eu fui memorizando determinadas sonoridades e, quando eu fui estudar música, me dei conta de que os sonoplastas usavam o que havia de mais moderno no século XX: Stravinsky, Weber... compositores que, se você colocasse no (Teatro) Municipal, o público sairia correndo de lá ! No entanto a minha mãe, semi – alfabetizada, ficava ouvindo aquilo numa boa. O rádio era mais cultural do que o Teatro Municipal.

RA – Então, sem saber, a sua mãe ouvia os tais ‘artistas impopulares’ que você cita em um dos seus livros (Música Impopular, Global editora) ?

Medaglia – Exatamente. Os artistas impopulares no rádio eram populares, sem que o público soubesse. Existem trechos que tocam ainda hoje. Por exemplo: "Noite Transfigurada", de (Arnold) Shoenberg, que foi o cara mais vanguarda do século XX, incompreendido até morrer, hoje ouve-se um pouco mais da música dele. E tem um trecho dessa peça que, até hoje quando eu ouço, quando eu toco, vem a imagem da minha mãe ali sentada, fazendo costura, ouvindo aquilo. Toda essa música de vanguarda do século XX estava no rádio, que era, efetivamente, um veículo de vanguarda no Brasil.

RA – Em outra oportunidade, você disse ao RA que a boa música anda afastada dos meios de comunicação, inclusive do rádio. Isso sempre aconteceu ?

Medaglia – Não, não, não... pelo amor de Deus ! (enfático). No Brasil o Rádio sempre foi o veículo da boa música, opa ! Nos áureos tempos, quando a presença da televisão não era tão forte, você ligava as rádios e ouvia: Pixinguinha, Dilermando Reis, Altamiro Carrilho, Baden Powell, Paulo Moura, orquestras sinfônicas... as rádios tinham sinfônicas ! Arranjadores que faziam sucesso nas salas de concerto, com suas sinfonias... Radamés Gnattali, Guerra Peixe, Cláudio Santoro, eram compositores, grande músicos que faziam sucesso na música de concerto, escreviam para as salas de espetáculos do mundo inteiro e estavam fazendo arranjos todo dia pro Rádio ! Eu me lembro que os três maiores violoncelistas do Rio de Janeiro, Mario Tavares, que foi regente do Teatro Municipal muitos anos; Ibere Gomes Grosso, considerado o maior violoncelista brasileiro do século e Aldo Paisu, que é professor da universidade de Yale, nos EUA, eram os três primeiros celos da Rádio Nacional ! Ficavam lá tocando para a Angela Maria cantar... na realidade, as rádios tinham grandes esquemas de produção, muitos músicos e cantores da melhor qualidade. Francisco Alves, Carlos Galhardo... toda essa turma. Eram cantores sofisticadíssimos ! A Dalva de Oliveira era uma verdadeira Maria Callas da música popular ! Tinha uma voz, uma técnica vocal, que eu não sei onde ela aprendeu. Ela usava a voz como se tivesse estudado 20 anos no conservatório de Paris ! E esses artistas eram populares, quer dizer, o povo brasileiro adorava o que existia de melhor.

RA – E o que foi, digamos, estragando o rádio, a televisão ?

Medaglia – A TV foi se espalhando, crescendo demais... foi preciso produzir muito e muito depressa. Então, nessa correria toda de fazer o mercado da música mais rápido, mais profissional, mais barato e mais abrangente, aos poucos a qualidade foi ficando para trás em função da necessidade do mercado de consumir muito. Então os produtores, tendo pressa e não tendo paciência, faziam o seguinte: ‘Ah, o Cartola fez aquela música tão bonita, mas ainda não acabou... tá faltando um pedaço. Bom, vamos esperar mais uma semana, quem sabe semana que vem ele termina. Quer saber ? Deixa o Cartola pra lá ! Vamos pegar aquele cara ali, que fez um sambinha parecido com o dele e...’. Quer dizer, aos poucos, foi sendo substituído o talentoso pelo mais simples, pra se produzir mais depressa. Essa música ruim, que eles chamam de dupla caipira, que na verdade e um bolerão brega, pode ser muito romântica, mas é tão fraca, sem consistência musical, pobre, né ? Aí você esquece ela (a canção) logo, e é o que eles querem: uma música que você compre o disco, ouça no rádio, na televisão, faça um puta evento comercial e pumba, esquece no dia seguinte ! Isso é bom pra indústria, porque aí ela já põe outra. O Pixinguinha fez o "Carinhoso" 80 anos atrás e continua sendo cantado... isso aí não interessa, eles querem uma coisa que dure 8 dias !

RA – E como você lidava com tudo isso no período em que ficou à frente da Rádio Roquete Pinto, no Rio de Janeiro ?

Medaglia – Essa foi uma das experiências mais deliciosas da minha vida. Era uma rádio de funcionários públicos e, nada que é de funcionários públicos no Brasil funciona bem, né ? Então, o que eu fiz ? Mandei esse pessoal, uns 300 funcionários – se todos aparecessem ao mesmo tempo não caberiam na rádio – embora. O Rio de Janeiro, na sua velha tradição de cabide de emprego. Os políticos sempre pagavam suas dívidas políticas dando empregos para parentes, amigos e amantes... aliás, tinham umas gostosonas que eram as típicas mulheres que ganhavam cargos dando pra algum. Lembro de umas boazudas que eu tinha lá... mas enfim, o que eu fiz ? Selecionei 20 pessoas que gostariam de fazer uma rádio diferente. Falei assim ‘Vocês topam fazer um projeto novo ?’. Para os outros 280 eu disse: "Vocês vão assinar ponto na puta que o pariu, longe daqui ! Na secretaria de cultura, no Palácio do Governo... eu só não quero ver vagabundo aqui!". Aí eles adoraram, não precisavam nem aparecer na rádio. Eu não podia mandar embora, funcionário público é eterno, né ? Esses ficavam ganhando pra não atrapalhar. Então peguei os 20 que sobraram e contratei mais seis, que eram os meus assessores. Aí eu disse o seguinte: ‘Olha, pessoal... eu quero que vocês façam um levantamento os melhores programas radiofônicos do Rio de Janeiro.’. Ai eles saíram gravando os melhores programas do Rio, que eram excepcionais do ponto de vista de radiofonia criativa, com muito jornalismo agressivo.Tinha um programa chamado "Patrulha na Cidade" que era um barato: quatro atores faziam 20 vozes cada um e radiofonizavam os crimes. E eles eram tão geniais que o crime não tinha a menor importância, a radiofonização era tão sensacional que o público levava aquela farsa a sério. A sonoplastia era de um gênio chamado Formiga, ele fazia uma verdadeira ópera com uns 500 tipos de sons diferentes ! Aquilo foi uma das coisas mais geniais que eu vi na minha vida. Então eu peguei todos esses grandes modelos de rádio popular da melhor qualidade, pus um ao lado do outro, juntei a equipe e falei: "Minha gente, eu quero ver isto aqui agora, a mesma coisa, só que inteligente, feito por pessoas que tenham nível cultural, conteúdo.". Por exemplo: tinha um cara que fazia um programa matutino lá na rádio, que era sensacional, só que era um troglodita, mas fazia rádio melhor do que ninguém ! Aí eu perguntava: quem é o correspondente a esse cara que poderia fazer isso na nossa rádio ? Pensamos no Hugo Carvana ! O Carvana é um malandrão carioca, só que é um cara com bagagem cultural, ou seja, ele poderia fazer um programa semelhante ao popular, só que com mais informação, inteligência. E assim eu fui procurando em cada setor um representante. Inclusive, convidei o Big Boy, que era o maior DJ da época. Ele teve uma passagem memorável pelo rádio. Eu falei pra ele: ‘Você vai ser Big Boy aqui na minha rádio... eu vou falar com o pessoal da Globo, eles vão te liberar, só que aqui você vai ser o Big Boy da música clássica !". Ele levou um susto e disse: ‘Mas po, eu só conheço roqueiro !’. Aí eu falei: ‘Eu vou te dar os discos, todas as informações e você vai falar de Stravisnsky como você fala dos Rolling Stones !". E fizemos a experiência. Foi um barato. Ele falava com aquela mesma desenvoltura... então eu consegui manter a forma, maravilhosa, criativa dinamica e moderna do Rádio brasileiro, só que acrescentando um conteúdo melhor.

RA – E isso durou quanto tempo ?

Medaglia – Seis meses. Depois desse tempo as outras rádios começaram a tirar o meu pessoal ! Um deles foi ser diretor da Radiobrás, tá até hoje lá em Brasília...

RA – Foi em que ano mesmo ?
Medaglia – Em 75. Faz quase 30 anos.

RA – E você não tem vontade de repetir essa experiência em outra rádio ? Por que não tentou de novo ?

Medaglia – Porque não me deram oportunidade! Se eu pudesse pegar uma Rádio Cultura, uma TV Cultura, eu faria uma puta festa.

RA – Taí... porque a Rádio Cultura não tem tantos ouvintes quanto merece? Ou não merece ?

Medaglia – Porque tem alguns equívocos de programação. É uma gente muito séria e tudo mais, ela já esteve em décimo lugar. E a TV Cultura, que deveria ser um laboratório de pesquisa de linguagem televisiva, não é. Hoje, com as TVs a cabo, o público acima do nível da empregada doméstica já tem onde assistir uma televisão melhorzinha. O cara liga no cabo e pronto. A TV Cultura perdeu o sentido... se ela sair do ar hoje, ninguém vai perceber. Você tem um ou outro programa, como o "Roda Viva", sei lá o que mais... infelizmente. Ela deveria ser uma estação acima das outras, no sentido de ser uma provocação à TV brasileira. E para isso teria sentido gastar dinheiro público, fazer uma televisão que traga uma contribuição à linguagem do veículo... aí eu faria a mesma coisa que fiz na Roquete Pinto: um programa que tivesse a dinâmica de uma TV de boa qualidade, só que com melhor conteúdo. Pegaria o Boni e pediria que ele fizesse a televisão genial que ele sempre fez, só que com idéias.

RA – Por que as rádios de música clássica tem uma cara tão sisuda ? Os clássicos são assim carrancudos um é uma questão de imagem ?

Medaglia – Outro dia saiu no Estado (de São Paulo) uma reportagem sobre Kiri Te Kanawa cantando no Parque do Ibirapuera... ela é a maior soprano, a maior cantora viva no mundo inteiro hoje em dia. Custou uma puta duma grana trazer essa mulher pra cá ! Foi caríssimo ! Essa mulher só canta no Metropolitan, Carnegie Hall, no Golden Garden... de repente, ela estava cantando no Ibirapuera. E tinham 90 mil pessoas assistindo ! E não deixavam a mulher sair ! Aos berros o pessoal pedia pra ela voltar... aí ela voltou e cantou uma música. Se você coloca o caviar na boca das pessoas, o caviar musical, as pessoas gostam ! O que precisa é ter uma estratégia. Na realidade, o grande mercado musical prefere a coisa mais primária. É mais fácil você chegar e criar um tipo de sensacionalismo, como o Gugu Liberato, que colocou lá um cara encapuçado dizendo que era do PCC dizendo que ia matar um e outro... todo mundo liga, claro.
Qualquer chantagem que você faça dessa natureza, de provocar através do grotesco. Existem tipos de provocações que você pode fazer com o grosseiro, o vulgar, que as pessoas ligam pra acompanhar aquilo. E como a maioria da população não tem possibilidade de lazer, não pode ir ao teatro, cinema... então, pumba ! Liga a televisão, que foi comprada à prestação - e que assim mesmo custou horrores, encheu de grana os banqueiros - pode ir lá e ver alguma coisa. Como os meios de comunicação não têm nenhum controle – e eu não falo de censura - quando se consegue um bem público como esse, que se faça bom uso dele ! Quem faz um mau uso deveria ter a concessão cassada ! Mas isso não acontece. Monitorar não é censurar. Eu fui na sede do Silvio Santos (SBT), na rodovia Anhangüera, e fiquei embasbacado... como é lindo aquilo, putz ! É uma das coisas mais sofisticadas que eu vi na minha vida... a universidade da Califórnia não é tão moderna quanto os estúdios do Sílvio Santos! Você chega lá e um pessoal educadíssimo te recebe na porta e te coloca numa sala VIP com ar condicionado. Fora os jardins maravilhosos, a excelente comida do restaurante... aí você liga no ar e vê o Ratinho? O Gugu Liberato mentindo ? Aqueles programas grotescos... é uma pena que o Sílvio Santos não saiba fazer televisão. Em vez de ele dar pro Boni fazer aquilo "vai lá... brinca com isso aí e me dá uma grana de vez em quando !", ele ia ficar mais milionário do que já é. Ele não sabe fazer programação de televisão, o que a Globo soube.

RA – Então a lição da Rádio Roquete Pinto continua valendo, certo ? A música clássica precisa de uma embalagem mais moderna pra tocar em rádio ?

Medaglia – Isso. O problema é que, como a música clássica é uma coisa mais trabalhada na sua forma de expressão, as músicas são um pouco mais longas... o chamado rádio comercial não se interessa por ela, porque é um tipo de música que exige uma certa concentração dos ouvintes, tem que comprar o disco e ouvir mais de uma vez, começar a gostar... coisas desse tipo. A música popular, não. Você pega um cantor, uma mulher linda, a Sandy, bonitinha, com as suas coisas lá, vai no palco, canta... e a música acaba em dois minutos e meio, né ? Pronto, isso resolve o problema: a beleza melódica, o charme, etc. Em menos tempo você resolve o problema de sedução. Já a música clássica exige um certo cuidado... então, a indústria não quer saber disso. A indústria cultural quer vender e que você jogue fora o mais depressa possível, consuma e descarte. Essa é a grande filosofia. Agora, quando surge a oportunidade de alguém conhecer um pouco mais, acaba gostando, vê que não tem nenhum bicho de sete cabeças. Esses concertos que a gente faz em parques, de vez em quando, mostram que o público senta lá e fica aos berros, parece até show de Chitãozinho e Xororó ! Quer dizer, o público não é imbecil como acham os donos das gravadoras.

(Toca o telefone. O maestro pede uma pausa e vai atender à ligação.)

RA – Continuando... porque esse interesse só acontece em shows ao vivo ? É muito difícil transportar essa empolgação dos parques para o rádio ?

Medaglia – Eu acho que é possível. Se eu fosse diretor de uma rádio, começaria a colocar aos poucos esse tipo de música. Aliás, houve essa possibilidade uma vez... um grande empresário aqui de São Paulo queria comprar uma rádio e me deixar brincar com ela, ele já é dono de rádio. Eu propus a ele uma outra programação, e a minha idéia seria essa, fazer uma programação de rádio semelhante à Rádio Cultura, mas com outras características. Seria uma música clássica palatável, sem grandes vanguardas ou experimentalismos, uma música de boa qualidade, tranqüila e, de pouco em pouco tempo, notícias. Assim o público que tem um certo nível deixaria aquela rádio ligada o tempo todo e, de vez em quando, um cara falaria a cotação do dólar e coisas desse tipo. Assim acho que poderíamos seduzir ouvintes. A programação da CBN, por exemplo, que é uma rádio informativa e faz um jornalismo de excelente qualidade, é insuportável de ouvir ! Eles fazem sonoplastia de Jovem Pan, parece rádio pra teenager ! Um dia eu ainda vou contar quantas vezes entra aquela vinheta em uma hora, acho que mais de 500 vezes ! É uma atrás da outra ! Lá não precisa disso... o cara que vai ligar na CBN o dia inteiro, que precisa da notícia, não tá afim de aturar aquela gritaria em casa o tempo todo. Existem muitos projetos de rádios que poderiam ser feitos, mas eu não vejo nada acontecer. Ou eu vejo as pessoas tentando vender disco – aliás, tentando vender sustentados pelas próprias gravadoras, que tem até tabelas. Se você é dono de uma rádio, e quer por (uma música) três vezes por dia no ar, custa tanto, parece que 20 paus. Não sei quantas vezes já custa 80 (mil reais)... pra por na televisão custa 200, pra por no programa do Faustão custa não sei quanto...

RA – Então o jabá foi oficializado ?

Medaglia – O jabá é oficial. Eu me lembro que essa história nasceu na TV Globo, quando eles perceberam que o Chacrinha recebia grana por fora para divulgar músicas. A Globo percebeu e falou "Opa ! Se alguém tem que receber jabá que seja a emissora ! Vamos até dar uma parte pro Chacrinha...". E aí eles oficializaram o jabá, foi nessa época que eu me aproximei do Boni e falei: "A coisa do jeito que ficou assim, com as gravadoras pagando pra pôr no ar, toda a música brasileira vai ficar na mão das gravadoras... a televisão e a rádio estão perdendo a sua função de investigar a música, criar e popularizar artistas e deixar a gravadora vir por último e documentar aquilo".

RA – Sei... o jabá tirou a naturalidade do processo ?

Medaglia – Como as gravadoras foram crescendo, crescendo, crescendo, começaram a precisar produzir muito. Então, nessa velocidade de produção, ela tirou aquilo que havia na rádio antigamente. As rádios tinham contato através dos programas de calouros, pessoas que trabalhavam ali dentro traziam um outro convidado, iam inventando. Existiam programas de auditório – apesar de ter aquela figura da "macaca de auditório" – mas o auditório acabava aplaudindo mais um, menos o outro, havia um contato com o público. Não é uma coisa que nem hoje, que os caras ficam sentados num ambiente de ar condicionado inventando os monstrengos. Não, a coisa nascia naturalmente... ela saía do povo e chegava ao rádio e, através do veículo, se tornava popular. Depois vinha a gravadora e documentava. Esse era o processo. Eu falei isso pro Boni naquela época, me lembro até de ter feito um projetinho, o "Pedro Álvares Cabral – vamos descobrir o Brasil", eu falei pra ele: ‘Você faz tão bem televisão, como ninguém no mundo, e qualquer coisa que você faça dá certo... então, vamos fazer uma coisa de qualidade !". A idéia era ir investigando, procurando pessoas no Brasil, e a gente traria pra TV e começaria a criar os ídolos, os novos cantores, compositores... infelizmente isso não aconteceu e tudo ficou na mão das gravadoras. Aí as gravadoras passaram a ser donas da música. E como elas não podem pagar pelo horário noturno, a televisão não põe música no ar há quase 20 anos ! No horário nobre não tem música... os últimos programas foram em 1985, 86, como Chico & Caetano, não tem mais Globo de Ouro, nada.

RA – Tirando um especial ou outro...

Medaglia – Um ou outro... aí juntam um patrocinador daqui ou dali, todos ganham uma puta grana e botam lá Sandy & Jr no ar. Agora, essa dinâmica acabou... tanto é que, quando tentaram implantar um festival, criaram aquele em... acho que 2001, e acharam que artificialmente eles poderiam recriar o interesse pela música na televisão. No dia seguinte ninguém mais lembrava ! Nem a música que ganhou as pessoas sabiam ! A coisa não penetrava nos meios de comunicação, nem as músicas vencedoras...

RA – E como é o Medaglia radialista, que já está há 17 anos no ar (programa Tema e Variações, Cultura FM)?

Medaglia – Eu procuro fazer um programa onde, com algumas poucas frases, motive as pessoas a ouvir a música que vem logo em seguida. Procuro não encher o saco, ser curto e grosso e provocar alguma inquietação, pra que o cara quando ouça saiba que ali tem alguma coisa interessante pra ele ouvir. No final faço um pequeno comentário, alguma provocação e, às vezes, eu deixo sair umas faíscas, né ? Tem tanta porcaria aí vendendo no Brasil de hoje – e na Europa também. Você liga o rádio na Europa e é uma porcaria que dá até pena. Antigamente, as rádios estatais tinham programas de música clássica. Como eles não tem cultura popular, a música clássica lá é melhor. A música popular deles consegue ser pior do que a nossa 20 vezes ! É de morrer de rir ! Eu fui agora fazer uma conferência no sul da Alemanha, depois fui pra Berlim... como eu tinha uns dias livres, pensei: ‘bom, vou alugar um carro’ e fui, devagarzinho, subindo pela Alemanha, visitando uns amigos.. e não foi possível deixar o rádio ligado durantes esses dois dias, tanto era a porcariada que tocava. Era só lixo. Até os programas de música evangélica daqui são 500 vezes melhor ! Voltando ao programa, vou pontuando para que o ouvinte possa ouvir com um pouco mais de interesse. O público da Rádio Cultura é qualificado por natureza, que já gosta desse tipo de música: publicitários, engenheiros, advogados... gente que quer um som agradável no seu escritório. Aí eu chego e digo algumas poucas coisas e tal, nada de revolucionário. Só de vez em quando eu faço umas entrevistas no programa de sexta – feira.

RA – Nós já demos aqui no RA a notícia (leia leia aqui) de que você vai assumir a direção de um teatro no Shopping Frei Caneca, com inauguração prevista para janeiro de 2004... ele vai receber o mesmo tratamento de luxo que foi dado à Sala São Paulo ?

Medaglia – Não, não, não...

RA – É que a Sala São Paulo custou caro, né ?

Medaglia – Mas não é só esse o problema. É que a OSESP (Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo), que é a melhor orquestra que já se fez no Brasil, toca para aqueles assinantes que se sentem donos da orquestra, mas quem não é (assinante) tem que pagar uma nota pra entrar. Essa orquestra vai tocar na Alemanha, mas não toca em Jundiaí, pô ! O cara que paga imposto, que deveria poder ver a orquestra na sua cidade, não vê. Agora, o cara lá na Suíça, vai ouvir a orquestra ! É uma loucura, entre outras loucuras dessa orquestra... mas fazer o que ? Ninguém acha ruim... os jornalistas, que estão aí pra criticar, não criticam. Eu não posso falar.

RA – Então vamos lá: quais são as loucuras da orquestra ?

Medaglia – Uma porção de coisas... eu não posso falar. Como eu teria interesse em ter a OSESP na minha mão, as coisas que eu poderia denunciar vão dizer que é despeito meu. Vocês (jornalistas) que investiguem isso lá... tá cheio de loucura ali dentro, uma série de coisa. Mas o que eu vou fazer ? Pagar 35 mil dólares pro maestro ? Onde é que tem isso ? O salário do maestro é mais do que ganha a orquestra da Rádio (Sinfonia) Cultura inteira ! Enfim... e outras coisas que eu não posso dizer, porque é a minha área e, se um dia me convidarem pra dirigir essa orquestra ou outra eu vou fazer um trabalho... e não se faz nada destruindo o trabalho dos outros.

RA - Mas esses desafios você está pronto pra topar ? Dirigir uma rádio, assumir uma orquestra...

Medaglia – Claro, qualquer coisa ! Eu to com um projeto agora de fazer uma grande orquestra fora de São Paulo, que vai correr o Brasil inteiro levando a música de altíssima qualidade, fazendo concertos populares e, onde os músicos passarem, vão dar aulas aos músicos da região. Isso é gastar dinheiro público com coerência. A OSESP custa uma puta de uma grana e aqueles cinco mil assinantes que freqüentam a sala são os donos da orquestra. O Estado gasta não sei quantos milhões só para aqueles caras ! O cara que mora em Bauru e pagou imposto não vê a orquestra. Mas em pouco tempo o Brasil vai ter uma nova sinfônica, e com idéias. Uma orquestra deve ser uma usina de idéias, provocar a vida cultural da cidade... pode fazer música para filmes, óperas, concertos populares e até para rádios. Estou pronto para o que der e vier, mas eu não tenho muitos aliados, as pessoas não gostam de trabalhar comigo... porque eu sempre quero colocar idéias, provocar, e os políticos não querem tumulto na área deles. E não dá pra fazer omelete sem quebrar ovos, né ? (Rodrigo Rodrigues, da Rádio Agência)

Nenhum comentário: